Trabalhos Acadêmicos

O cinema verdade de Jean Rouch

Por: Eduardo Lacerda, Fernanda Castelo Branco, Michelly Xavier, Priscila Cuiais


Introdução

Esse trabalho tem por objetivo analisar o Cinema Verdade, através da obra de Jean Rouch – particularmente o filme “Eu, um negro” (Moi, un noir, 1958) – assim como discutir as contribuições deste diretor para o cinema e para o movimento da Nouvelle Vague.
Buscou-se contextualizar o filme no universo do Cinema Verdade francês, relatando as causas de sua efetivação, tais como sua relação com as Ciências Sociais, em especial a antropologia – o olhar etnográfico aliado à arte, e o desacordo com a premissa de neutralidade do Cinema Direto norte-americano, lidando com a verdade do cinema, ao invés da verdade no cinema.
Ao tratar da vida cotidiana, dialogando com o(s) personagem(s) e mostrando sua construção pelo próprio sujeito, e ao realizar seus filmes dentro de uma lógica que contivesse exatamente esse ato de criação, Rouch desenhou uma estética que, valorizando a forma como via o outro, revelava seu próprio modo de ver e interagir com o mundo. Este tipo de reflexão implicava uma proposta ousada, que aponta para um novo modo de documentar, incorporando a ficção.
Foi inovador também ao trabalhar diferentemente com a fase da montagem, construindo efeitos inesperados pelo público através da mistura entre realidade e ficção e explorando ainda a “dublagem improvisada” (antes do advento do som sincrônico), pondo sempre a questão da interação em primeiro plano.
Ainda no presente trabalho, exploraremos as principais influências do Cinema Verdade francês e da obra de Jean Rouch para o documentário brasileiro, especificamente no Cinema Novo e na produção paulista dos anos 60. Abordaremos as influências que condizem às temáticas e à maneira de filmar, como o retrato do povo e a denúncia social, o uso da ficção no registro da realidade e o filmar reflexivo; assim como as inovações técnicas trazidas pelo Cinema Verdade e também pelo Cinema Direto, como o som sincrônico.

O Cinema Verdade francês

O Cinema Verdade francês teve seu surgimento vinculado às Ciências Sociais, já que seus cineastas possuíam formação acadêmica no campo da antropologia e da etnologia. Eles defendiam um novo modo de se fazer cinema, um que trabalhasse com a interatividade, que mostrasse e brincasse com o estar presente.
Essa corrente ia em oposição à imparcialidade e à objetividade defendidas pelo Cinema Direto norte-americano como modelo fiel de representação do real, por acreditar que a neutralidade proposta da câmera e do gravador seja uma falácia. Para os defensores do Cinema Verdade quando uma câmera é ligada, produz-se involuntariamente uma mudança no modo de agir das pessoas, devido à falta de privacidade que sua própria presença provoca. Defendiam, portanto, sua utilização como instrumento consciente de produção dos próprios eventos, visando provocar situações reveladoras, característica predominante em sua linguagem.
No documentário participativo, segundo a classificação proposta por Bill Nichols, o espectador recebe a idéia do que é, para o cineasta, estar em determinada situação e como essa consequentemente se altera. O cineasta sai da posição de distante observador para dialogar e atuar com os atores sociais de seus filmes; no entanto, mesmo que ele deixe de ser a “mosca na parede” e passe a ser a “mosca na sopa”, continua tendo a câmera na mão, e com ela, uma parcela de poder e controle sobre os acontecimentos.
Os cineastas interativos apostavam na capacidade da câmera em promover a subjetividade do real, não como fato em si, mas no desenvolver do sujeito como personagem durante as filmagens, de como esse se emprega de símbolos ao construí-lo, estando esse movimento presente na vida. Eles se ocupam justamente da capacidade de distorção da câmera, para que, positivamente, ela seja capaz de permitir essa constante imersão no universo de símbolos e construção de personagens que nós mesmos realizamos, no teatro emergencial da vida posta-em-cena, o superverdadeiro.
Ao ser capaz de mostrar seu crescimento, sua mudança, graças à interação, o indivíduo perde a função de objeto observado e passa a ser sujeito atuante na realização do filme, levantando a questão da própria transição do documentário para a ficção ou vice-e-versa.
Rouch e Morin, principais precursores desse modelo, defendem que a idéia de Cinema Verdade enfatiza a verdade de um encontro em vez da verdade absoluta ou não-manipulada, ou seja, como o cineasta e as pessoas que representam seu tema negociam um relacionamento, como interagem, que formas de poder e controle entram em jogo e que níveis de revelação e relação nascem dessa forma específica de encontro.
Como declarou o próprio Jean Rouch:
“A questão toda é saber manter a sinceridade, a verdade para com o espectador, nunca esconder o fato de que estamos diante de um filme... Uma vez estabelecido esse pacto de sinceridade entre filme, atores e espectador, quando ninguém está enganando ninguém, o que interessa para mim é a introdução do imaginário, do irreal. Usar o filme para contar aquilo que apenas pode ser contado em forma de filme.”

Características estéticas de Moi, un noir

Jean Rouch tem sua produção marcada pela afinidade com a antropologia. A estética de seus filmes está diretamente relacionada com essa experiência de “trabalho de campo”. Desde sua primeira visita à África, em 1941, ainda trabalhando como engenheiro, se sensibilizou com a experiência do conflito cultural. Rouch morreu na Nigéria em 2004 e, ao longo desses 63 anos, sua ligação com o continente e a população africana se tornou forte. Grande parte de sua produção cinematográfica foi realizada lá, e constitui capítulo fundamental para o surgimento do chamado “filme etnográfico”.
Moi, un noir (1958) começa com uma curta narração em off que localiza o filme e contextualiza a situação em que vivem os personagens. Logo, o diretor passa a palavra a um dos garotos que vivem em Treichville (periferia de Abidjan, então a maior cidade da Costa do Marfim), para que se apresente – e a partir daí, poucas são as falas do narrador. Rouch propõe a um grupo de jovens que inventem papéis para si mesmos e os acompanha durante alguns meses. Não hesita misturar dados factuais com ficção, coloca-os em cena e os convida a criar o filme em conjunto.
A intenção do diretor não é registrar, mas provocar a ocorrência de determinadas cenas que se quer capturar: "A câmera não deve ser um obstáculo para a expressão dos personagens, mas uma testemunha indispensável que irá motivar sua expressão", avaliou Jean Rouch.
Os personagens são inventados e nem por isso se deixa de retratar a realidade daqueles garotos que os interpretam. Justamente por apresentarem, diante das câmeras, situações com quais já estão familiarizados, os personagens parecem bastante à vontade, inclusive quando surgem imprevistos, o que cria um tom livre, sincero, e uma cumplicidade com o espectador.
São muito comuns os planos mais abertos, exibindo o cenário de Treichville, como nas cenas em que Eddy Constantine e Edward G. Robinson andam pela cidade. A câmera os acompanha em tarefas cotidianas, nos dias de trabalho, nos encontros com os amigos – e então é difícil distinguir até que ponto aquela é a vida dos personagens ou dos meninos. O diretor explicou assim sua proposta: “Em Moir, un noir, eu queria mostrar uma cidade africana, Abidjan. Poderia fazer um documentário cheio de cifras e de observações objetivas. Seria terrivelmente aborrecido. Então eu contei a história com os personagens, suas aventuras, seus sonhos. E não hesitei em introduzir a dimensão do imaginário, do irreal. Um personagem sonha que ele boxeia, então o vemos boxear.”
As imagens foram capturadas sem som e, só depois de montado o longa-metragem, os próprios “personagens-atores” recriaram suas falas, de maneira improvisada, sem preocupação em encaixá-las com o movimento dos lábios. Assim, o som não-sincrônico que caracteriza o filme combina dublagens e comentários espontâneos.
Os diálogos gravados a posteriori implicam uma reflexão, por parte dos garotos, sobre as cenas em que eles haviam atuado algum tempo antes, pois a exibição do filme, evidentemente, estimulou a memória dos atores quanto ao contexto original da cena, mas também pode ter provocado neles reações inesperadas, imprevistas, que tenham adicionado ao filme uma nova etapa de produção de sentido: “O jogo entre imagens e falas não-sincronizadas abre espaço para a intervenção da memória, dos sonhos e das fábulas.”
A mistura entre realidade e ficção e a dublagem improvisada constroem efeitos inesperados pelo público. Contudo, a montagem das cenas não deixa de compor uma narrativa mais fácil de acompanhar, o que provavelmente também deve ter influenciado na própria reconstituição das falas dos personagens. A conversa de Eddy Constantine com Dorothy Lamour, por exemplo, apresenta o familiar plano-e-contra-plano que vemos nos longas hollywoodianos. Os closes nos rostos, as seqüências, já criam expectativa pelos diálogos românticos.

Influência de Jean Rouch sobre a Nouvelle Vague

O nome de Jean Rouch é comumente associado a um pioneirismo dentro da “Nova Onda” francesa. Ele foi incensado na época, final dos anos 50 e início dos 60, por vários cineastas franceses que vieram a reconhecer a autenticidade inovadora de seu cinema-vérite - um “cinema dialético”, indissociavelmente em trânsito e alimentando uma “antropologia compartilhada”, numa área de contaminação e livre-fronteira que engendra uma verdadeira “arte do duplo”, em suas palavras. Além destes cineastas, que nutriam certo fascínio para com o que Rouch estava fazendo com seu cinema, vários críticos na contemporaneidade atestam sua influência sobre a Nouvelle Vague, como se ela fosse mesmo bastante tributária do seu trabalho, além de reconhecer sua obra como um marco na história do cinema.
Isto porque ele conseguiu sintetizar na sua maneira de fazer cinema vários aportes teóricos e metodológicos da seara documental então já propostos por nomes como Flaherty, Vertov (e seu “cinema-verdade”) e Ivens. Simultaneamente, dialogava com o neo-realismo italiano e com o cinema francês da Nouvelle Vague, ainda se estruturando em forma coletiva. Mas talvez o que tenha feito Rouch de fato um nome essencial na história do cinema tenha sido a alta-costura que produziu entretecendo as dimensões ficcional e não ficcional, do cinema e no cinema. Ele foi talvez o cupido que melhor aproximou estas duas abordagens, criando uma terceira abordagem que é em suas palavras “a verdade do cinema, e não a verdade no cinema”. Esta abordagem ganha contornos expressivos em seu filme Moi, um Noir (1958), que apresenta ao mundo o dispositivo rouchiano da “re-narração”, como diz Felipe Bragança, crítico da revista virtual de cinema “Contracampo” . Utilizando-se da voz em off, colocada a posteriori da filmagem, permitia que os atores também fossem autores e adicionassem interpretação narrativa e memória subjetiva à atuação já consumada numa espécie de “releitura comentada de si próprios”. Esta forma de “encenar a realidade”, no advento da etnoficção, deixou entusiasmados os cineastas franceses que buscavam inovação e frescor para a sua produção cinematográfica. Um dos mais empolgados era Jean-Luc Godard, nome seminal da Nouvelle Vague:
“Em 1949, no Festival do Filme Maldito de Biarritz, ele recebe o Grande prêmio (concedido por Jean Cocteau) com seu filme Initiation à la danse des possédés, diante de um grupo de jovens cinéfilos fascinados, dentre os quais se encontravam Truffaut, Godard, Rivette e Chabrol. Considerado um pioneiro da Nouvelle Vague, Jean Rouch marcou o ano de 1959 com Moi, un noir, que Godard diz ser ‘o mais audacioso dos filmes e, ao mesmo tempo, o mais humilde. É completamente insano, mas é um filme de um homem livre’. Câmera no ombro, diálogos improvisados, liberdade de tom, Rouch faz ficção como se fosse uma reportagem.” Neste trecho – retirado da biografia que um site francês especializado em cinema apresenta – podemos dimensionar a recepção dos realizadores cinematográficos franceses para com o cinema de Rouch já em sua primeira fase, antevendo a trajetória revolucionária que ele viria a firmemente construir em mais de meio século de incansável dedicação a seu trabalho, “incorporando paixão à sua produção de conhecimento”, como salienta o antropólogo Kiko Goffman .

Mas Rouch, antes de ser cineasta francês, é um cineasta, e ponto. E a forma com que mesclava linguagens, misturava e criava dispositivos, integrava diferenças culturais, não teve seu reconhecimento restrito à França nem tampouco à Europa. Isto pode ser aferido pelo notável prestígio que alcançou fora do cinema francês, vindo despejar influências sobre o então nascente Cinema-novo no Brasil, como nos mostra Fernão Ramos em seu artigo “Cinema-verdade no Brasil” (ver bibliografia), sem falar a influência em grande parte do cinema etnográfico europeu produzido na segunda metade do século XX e na produção documental contemporânea, em muitas realizações mundo afora.
Decerto que, no plano técnico, é marcante esta influência. Rouch acabou dando vazão aos anseios técnicos dos cineastas da Nouvelle Vague e possibilitando que muitas questões teóricas que estavam sendo propostas embrionariamente para um novo cinema francês fossem postas em prática. Ele se aventurava para conseguir equipamentos mais leves, portáteis, que possibilitassem agilidade e liberdade de filmar com a câmera na mão, isto é, poderia filmar em qualquer lugar, fazendo filmes só com tomadas externas, quebrando de vez a precedência dos estúdios de cinema no ato de fazer cinema. Se nos Estados Unidos eram os jornalistas que experimentavam técnicas para se fazer cinema direto, na França eram os acadêmicos das áreas das Ciências Sociais que buscavam este domínio. Hoje em dia este é um procedimento usual e até mesmo básico para o cinema, o que não é tão difundido ainda é o reconhecimento da descendência rouchiana direta neste advento. Ele foi um dos primeiros a inovar com a câmera Super-8, ou a rodar com uma 16 mm (com lente fixa de 25 mm, no caso de Moi, un Noir), que dava a unidade de visão e a mobilidade de que precisava para filmar os acasos, para dar margem aos improvisos.
Os anseios dos diretores-autores que buscavam um modo mais livre de fazer cinema, o que significava inclusive mais locações externas nas filmagens, tinham em Rouch um aliado perspicaz. Desenvolvendo seus equipamentos à base de muito suor e experimentação, ele conseguiu mais tarde (anos 60) aperfeiçoar o maquinário sonoro, e junto com Kudolski chegou ao Nagra, um gravador portátil (para a época, pois na realidade pesava cerca de vinte quilos!) com o qual puderam rodar com som sincrônico, fazendo finalmente a coincidência de som e imagem, trazendo a “verdade” do instante captado – isto quem nos informa é Thomas Farkas , nome fundamental na história do cinema brasileiro. Se a Nouvelle Vague estava determinada a decretar a “falência” do modo tradicional de fazer cinema e da “obediência” aos ditames da grande indústria cinematográfica, ela certamente não poderia prescindir de Jean Rouch. Pois como aponta novamente Bragança , seu cinema é um “exercício de digestão do real já-dado e transmutado em expressões e identidades múltiplas que sobrevivem e se esquivam de hegemonia cultural, seja ela européia ou norte-americana”.
Truffaut defendia (quando ainda era apenas um crítico da revista francesa Cahiers du Cinéma), no bojo das idéias conceituais da Nouvelle Vague, a “Teoria Autoral” que trazia ao diretor a liberdade e a responsabilidade de ser um autor, como se o filme fosse mesmo um texto e o diretor, seu escritor. Não só ele como vários outros cineastas estavam interessados em filmar de modo mais independente e pessoal, mais autoral, menos restrito aos estúdios, produtores ou roteiristas. O movimento tinha para si uma responsabilidade política de “libertar” o cinema, deixar o autor-diretor escolher seu material, seu elenco, suas locações e procedimentos, conceitos e expectativas. Tinham em mente a prerrogativa de que um filme era, em última instância, um ponto-de-vista de seu realizador. Bem próximo ao que pensava Rouch, quando dizia que seu filme era uma construção fílmica (a idéia de fictio, que não vem de falso, e sim de construção); retratava de forma específica e possível uma realidade construída entre o diretor-autor, os personagens-atores e o público, num encontro mediado pela câmera. Rouch não se pretendia invisível nestas relações, ao contrário, ele sabia das implicações éticas para com uma suposta neutralidade, e defendia a realidade construída, dialogada, negociada até. O cinema era a arma que possuía para mostrar ao outro como ele o via.
Neste sentido acho que continua a inspirar e influenciar o trabalho de documentaristas compromissados eticamente para com o que produzem e com quem produzem. Contribui também para quem pretende filmar ficção, mostrando como a ficção e a realidade se enredam infindamente numa verdadeira colcha de retalhos. Influencia ainda qualquer um que não pretenda fazer um filme fechado, encerrado em si mesmo, mas abrir os olhos e ouvidos para as polirritmias, polissemias e subjetividades. Estes certamente estão num caminho caro a Jean Rouch.

Cinema Verdade e o documentário brasileiro

O Cinema Verdade, que se opõe em princípios ao Cinema Direto Americano, exerceu influência decisiva no cinema documentário brasileiro. A produção cinematográfica brasileira da década de 60 explicita essa interação. Com as inovações tecnológicas que vieram à época e a orientação do filmar reflexivo, o Cinema Novo superou o fascínio pela objetividade.
Permitiu-se, naquele momento, reconhecer a interferência dos meios de produção e revelá-la no documentário. Entretanto, a cronologia ainda é valorizada numa estilística de “verdade” completa. No que concerne às temáticas, o Cinema Novo também apresenta influências até mesmo no que tange a própria tradição brasileira de valorizar os “excluídos sociais” em suas produções.
Nesse aspecto podemos observar que os primeiros filmes cinemanovistas ainda sustentam-se no caráter educativo e no apoio do Estado, características que remetem ao Cinema Direto Americano. Nesse contexto, “dar voz aos excluídos” é mais um registro das tradições populares do que uma denúncia social. Marco inaugural do Cinema Novo é o filme "Arraial do Cabo", produção de 1959 de Paulo César Saraceni e Mauro Carneiro. Seguido por "Aruanda", por Linduarte Noronha em 1960.
Nos anos 60, no Rio de Janeiro, a produção cinemanovista irá definitivamente revelar a influência técnica do Cinema Direto. É inaugurada pelo seminário de cinema organizado pela Unesco e pela Divisão de Assuntos Culturais do Itamaraty, em 1962. Através do contato com o grande documentarista sueco Arne Sucksdorff, que se radicaria no Brasil, o Cinema Novo dialoga com o "fazer cinema" e com as novas técnicas do Cinema Direto Americano (Ramos, 2004). Um filme produzido dessa época é "Garrincha, Alegria do Povo", de Joaquim Pedro em 1962.
Nessa época, os cineastas brasileiros finalmente podem dispor dos primeiros Nagras, aparelhos que permitem som sincrônico à imagem, e são produzidos filmes como "Maioria Absoluta", de Leon Hirzman em 1964, claramente influenciado pelo Cinema Direto e fascinado pela forma de entrevista, e "Integração Racial", também de Paulo Saraceni de 1964, no qual são filmadas entrevistas apenas com um pressuposto temático e nenhum fio condutor, já com a predominância de temáticas de denúncia social.
Em 1965 Arnaldo Jabor produz "O circo", curta-metragem com clara e decidida influência do Cinema Verdade, sendo seguido por "Opinião Pública", também de Jabor em 1967. "O circo" é a primeira produção em que o Cinema Verdade adota sua verdadeira forma.
As produções paulistas, por sua vez, apresentavam um rigor maior na formalidade do documentário. Nesses, as entrevistas e as seqüências são apresentadas e gravadas de maneira mais diretiva, muito influenciados pela escola documentarista argentina. São produzidos os curtas "Viramundo", "Memórias do Cangaço", "Nossa Escola de Samba" e "Subterrâneos do Futebol", produzidos por Thomas Farkas entre setembro de 1964 e março de 1965, com participação de diversos diretores paulistas e argentinos. Tais documentários paulistas objetivavam retratar o povo, assim como as produções cariocas, e preservavam as tradições em risco de desaparecimento, como as nordestinas.
O Cinema Novo, porém, se aproxima definitivamente do Cinema Verdade, alcançando o aspecto ficcional como relevante, a construção como também reflexo. O filme Câncer, por exemplo, do diretor Glauber Rocha é emblemático dessa herança.

Os aspectos de construção e de entrelaçamento da realidade e ficção se mantiveram presentes até as produções atuais, notadamente nos trabalhos de Eduardo Coutinho e João Moreira Salles – apesar de suas diferenças estéticas, como a importante influência do Cinema Direto na obra de Salles.
Como Conclui Ramos (2004): "A forma narrativa que o Cinema Verdade inaugura compõe o veio central do qual hoje entendemos por documentário, embora muitas vezes surja misturada a narrativas com voz expositiva marcada ou a formas documentárias baseadas em reconstituição de fatos históricos, no estilo dos 'docudramas’”.
É inegável, portanto, a introdução da estilística “verdade” como essencial para a formação e, logo, para a compreensão do moderno documentário nacional. Jean Rouch, como grande representante do Cinema Verdade francês, foi figura que exerceu forte impacto sobre a produção brasileira. Atribui-se à exibição de "Chromique d'um éte", filme de Jean Rouch e Edgar Morin, de 1960 e exibido em 1962 no Brasil, o primeiro contato dos cinemanovistas com as potencialidades do Cinema Verdade.
Jean Rouch inaugura o uso de ficção como o caminho central para a penetração da realidade. Como o próprio diretor salienta, ele utiliza a linguagem do cinema para expressar o que apenas essa linguagem, em toda a sua singularidade, consegue dizer. Desta forma, se constrói a “interpretação sobre a própria vida” ou a vida “superverdadeira”.
Além de documentarista, Rouch é antropólogo, alcançando uma conexão não menos complexa do que a de ficção/realidade. O diretor conjuga documentário e etnografia de tal maneira que é impossível classificá-lo como documentarista ou antropólogo apenas. Grande maioria de seus 120 filmes foi produzida na África, sem que se restringisse a uma etnografia meramente descritiva e realiza uma denúncia social.
Nesse aspecto, Rouch contribui imensamente ao documentário brasileiro quando os documentaristas nacionais vão além da preservação das tradições dos excluídos para uma denúncia social. Aproveitam-se da estética do Cinema Verdade e do pioneirismo de Rouch para construir a denúncia social como uma das maiores características do cinema documentário brasileiro.
Felizmente, apesar dos “docudramas” já citados, o Brasil utiliza-se das possibilidades estéticas e ideológicas inovadoras do Cinema Verdade e de Jean Rouch para a construção da vida “superverdadeira” 8 das minorias brasileiras.

Conclusão

Jean Rouch torna-se um nome marcante na história do cinema na medida em que não se prende a padrões pré-determinados. A ousadia e inovação de suas propostas são evidentes em cada obra, e essa postura de experimentação certamente vem inspirando a produção posterior.
Ele exerceu importante papel na construção do Cinema Verdade também devido a sua busca por novos aparatos técnicos e de linguagem, instrumentos que foram essenciais para a formação do seu caráter de vanguarda, que viria a influenciar gerações subseqüentes.
Ruy Gardnier, também crítico da revista virtual Contracampo, avalia assim a contribuição de Rouch ao cinema: “Colocar em cena, fazê-los agir e criar junto, e não "registrar", essa é a pedra de toque primordial na relação de Jean Rouch com seus africanos, e essa é também a lição – na falta de vocábulo melhor – que o cinema de Rouch ainda tem a dar hoje. Lição que vem se conjugar com aquilo que o cinema vem produzindo de melhor atualmente – veja-se Shara de Naomi Kawase, Elefante de Gus Van Sant ou Dez de Abbas Kiarostami, todos desenvolvendo de alguma forma uma relação algo semelhante com seus personagens. Um cinema da aventura, um cinema do improviso, mas antes de tudo um cinema que acredita nos mecanismos do cinema para mostrar como há vida para além da tela, e como esse cinema concerne antes de tudo a vida.” (GARDNIER, Ruy - Contracampo )
Também a Nouvelle Vague, como vimos, segue tendo que creditar muito do seu sucesso enquanto um “movimento” e uma forma de se pensar e fazer cinema ao trabalho de Rouch, já que este deu forma prática, a partir dos anos 50, a muitas reflexões propostas pelos cineastas-autores-diretores franceses que vinham elaborando toda uma teoria que amparasse uma revolução por eles almejada na ação de fazer cinema. Principalmente porque conseguiu concretizar um cinema independente, reflexivo, autoral, ético e esteticamente inovador. Rouch segue sendo pioneiro deste movimento que posteriormente ganhou as telas mundo afora, consolidando uma tradição e uma escola afamada e reconhecida pelos realizadores, críticos e público.

Também Jean Rouch e o Cinema Verdade são indispensáveis na compreensão do cinema documentário brasileiro, desde o Cinema Novo dos anos 60 às produções atuais. Ele inaugura o uso de ficção no retrato da realidade e o pioneirismo tecnológico dos Nagras e do conseqüente som sincrônico. Permitiu uma produção inédita, com a revelação da influência do diretor na construção sobre a própria realidade. Rouch também influenciou definitivamente os temas da produção brasileira. A denúncia social e o registro das tradições discriminadas é um marco do cinema documentário brasileiro e deve muito à Rouch e seus trabalhos realizados na África.

Referências bibliográficas:

• DA-RIN, Silvio. Verdade e Imaginação. In Espelho partido, tradição e transformação do documentário cinematográfico. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2004, cap , pp.149/168.
• DE BRIGARD, Emilie. The history of ethnographic film. In HOCKINGS, Principles of Visual Anthropology, Mouton Publishers, 1974
• MARSOLAIS, Gilles. L’aventure du cinéma direct revisitée. Quebec/Canadá, 1997
• NEVES, David. A descoberta da espontaneidade – Breve histórico do Cinema Direto no Brasil. In: COSTA, Flávio Moreira da. Cinema moderno, Cinema Novo. Rio de Janeiro: José Álvaro Editor, 1966.
• NICHOLS, Bill. Introdução ao documentário. São Paulo: Papirus, 2005.
• RAMOS, Fernão. Cinema-verdade no Brasil. In Teixeira, F. E. Documentário no Brasil. Tradição e Transformação. São Paulo: Summus Editorial, 2004, pp. 81-96.
• SALLES, João Moreira. A dificuldade do documentário. In “O imaginário e o poético nas Ciências Sociais”, org. José de Souza Martins, Cornelia Eckert e Sylvia Caiuby Novaes. São Paulo: EDUSC, 2005, cap.3.
• TEIXEIRA, F. E. Documentário Moderno. In: Fernando Mascarello (org.), História do Cinema Mundial. Campinas: Papirus, 2006. pp.253-287.

Websites consultados:
• VIII Encontro SOCINE. “O jogo de vozes em Jaguar e Moi, un Noir”, de Daniela Dumaresq. Disponível em: http://www.unicap.br/socine/resumosS16.htm
• ALLOCINE – http://www.allocine.fr/personne/fichepersonne_gen_cpersonne=4601.html
• CASSIANO, Célia Maria. “Moi, un noir e a ‘desordem’ no cinema: Múltiplas vozes na representação da cultura do sub-proletariado africano”. Trabalho apresentado na INTERCOM de setembro de 2002. Disponível em: http://reposcom.portcom.intercom.org.br/dspace/bitstream/1904/18956/1/2002_NP13CASSIANO.pdf
• CONTRACAMPO. Artigo “Atualidade de Jean Rouch”, de Ruy Gardnier. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/60/piramidepetit.htm
• CONTRACAMPO. Artigo “O teatro vasado do real”, de Felipe Bragança. Disponível em: http://www.contracampo.he.com.br/60/oteatrovasadodoreal.htm
• GODARD, Jean-Luc. A África vos fala dos fins e dos meios. In Cahiers du Cinéma 94, abril de 1959. Tradução de Alexandre Werneck. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/60/africavosfala.htm
• KINOK Webzine Cinéma - http://www.arkepix.com/kinok/Jean%20ROUCH/rouch_filmo.html
• JEAN ROUCH TRIBUTE WEBSITE - www.der.org/jean-rouch
• CAHIERSDUCINEMA - www.cahiersducinema.com
• CRUZ, Paula e MAIA, Leonardo. “Nouvelle Vague, o jovem realismo francês”, publicado pela Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia.
Trabalho disponível em: http://www.facom.ufba.br/com112_2001_2/nouvellevague


Fontes complementares:
• Documentário “Jean Rouch: Subvertendo fronteiras”, produzido pelo Laboratório de Imagem e Som em Antropologia FFLCH-USP – Disponível como material Extra do DVD dos filmes “Eu, um negro” e “Os mestres loucos”, de Jean Rouch. Coleção Videofilmes.

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